Tutelas de Urgência em Ações Previdenciárias
Insegurança Jurídica e Deslegitimação da Jurisdição de Primeiro Grau
Por João Carlos Fazano Sciarini – Advogado, OAB/SP 370.754
Nos últimos anos, tem-se observado um movimento preocupante nos tribunais de segunda instância e, em especial, no Superior Tribunal de Justiça, relacionado à revogação de tutelas de urgência concedidas em primeira instância no âmbito de ações previdenciárias — notadamente aquelas envolvendo pensões por morte, benefícios por incapacidade e aposentadorias.
Embora a concessão de tutela provisória (de urgência) seja instrumento processual legítimo e amparado em sólidos fundamentos legais (art. 300 do CPC), o tratamento que essas decisões têm recebido pelas instâncias superiores compromete gravemente a segurança jurídica, a boa-fé objetiva e até mesmo a autoridade jurisdicional dos juízes de primeiro grau.
1. A natureza da tutela de urgência e a boa-fé dos segurados
A tutela de urgência, notadamente nas ações previdenciárias, é concedida com base na análise criteriosa dos requisitos legais: verossimilhança do direito (fumus boni iuris) e risco de dano irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora). Em geral, essas decisões são fundamentadas em laudos médicos, documentos oficiais, vínculos trabalhistas e históricos de contribuição previdenciária, o que afasta qualquer ideia de “aventura jurídica”.
Além disso, trata-se de prestações de natureza alimentar. O segurado, via de regra, depende diretamente do benefício para sua subsistência. Sua percepção é feita com respaldo em decisão judicial válida, proferida por magistrado competente, dentro da moldura legal.
No entanto, ao reformar tais decisões, os tribunais não apenas cessam os benefícios, como têm imposto a devolução dos valores recebidos. Essa prática ignora a boa-fé do segurado, que agiu amparado por decisão judicial. Ignora também o entendimento consolidado no STF e STJ de que valores recebidos de boa-fé, por ordem judicial, não devem ser restituídos (REsp 1.401.560/MT; STF, RE 611.503/RS, com repercussão geral).
2. A responsabilização dos advogados: um desvio inadmissível
Como se não bastasse, uma nova e abusiva tendência tem se consolidado: a responsabilização dos advogados que receberam honorários contratuais em decorrência da tutela judicial. Há casos em que estes profissionais têm sido executados para devolver valores recebidos legitimamente — quantias que também possuem caráter alimentar e foram percebidas como fruto de contrato válido e de atividade profissional regular.
Essa prática, além de injusta, viola frontalmente os princípios da confiança, da lealdade processual e da valorização da advocacia, previstos inclusive na Lei nº 8.906/94. Ao se executar um advogado por valores recebidos com base em decisão judicial válida, a jurisprudência cria uma instabilidade sistêmica, que ameaça a própria função da advocacia previdenciária, desestimulando a atuação em defesa de hipossuficientes.
3. A deslegitimação da primeira instância e o desprestígio da livre convicção motivada
Outro efeito colateral dessa jurisprudência é a gradual deslegitimação do juízo de primeiro grau. O magistrado que, com base em sua livre convicção motivada (art. 371, CPC), defere medida de urgência diante de provas robustas, vê sua decisão revertida sem consideração pelo contexto fático e probatório analisado no momento da concessão.
Com isso, forma-se um perigoso precedente: os juízes de primeira instância são indiretamente desestimulados a conceder medidas emergenciais, ainda que o caso as justifique. O temor da reversão com imputação de dano ao erário ou de responsabilidade solidária gera inércia, desconfiança institucional e, pior, sofrimento social para os segurados que aguardam decisões protetivas do Judiciário.
4. Defesa do erário sim, mas com limites constitucionais
É certo que a proteção ao erário é um valor relevante, especialmente em um país com histórico de dificuldades fiscais. No entanto, essa proteção não pode se sobrepor a direitos fundamentais, como o devido processo legal, a confiança legítima, a boa-fé e a dignidade da pessoa humana.
O STJ, ao normalizar a devolução de valores recebidos com base em decisão judicial, contribui para um estado de instabilidade e insegurança jurídica incompatível com um ordenamento comprometido com os direitos sociais.
Conclusão
A jurisprudência atual que autoriza ou impõe a devolução de valores recebidos em tutela de urgência previdenciária, bem como a responsabilização dos advogados, carece de respaldo legal, ignora princípios processuais fundamentais e compromete a confiança dos jurisdicionados no sistema de justiça.
É urgente que os tribunais superiores reavaliem esse entendimento à luz dos princípios constitucionais, da jurisprudência consolidada e da realidade social das partes envolvidas. A credibilidade da jurisdição de primeiro grau e a estabilidade do sistema processual dependem disso.
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